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Por Sobre o Mundo
“Sim, mas quem nos curará do fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer?”
Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha *
Quando o conheci éramos estudantes, e pouco contato tínhamos. Houve um único dia em que nossos olhares se cruzaram, nada mais. Nunca tivemos qualquer outro tipo de encontro. Transfigurou-se de imediato, compôs versos curtos e entrecortados, depois se afastou bruscamente, como alguém que vislumbra a possibilidade de algo como Deus, e quer, precisa ou se vê obrigado a prosseguir ateu. Desviou dos meus os seus olhos, como se afastam os olhos do sol forte do meio-dia.
Logo a seguir iniciou-se, bem em frente à janela de meu quarto, aquela construção. Em pouco dias, e sem que se pudesse entender como, se fez — a transpor a ampla avenida de oito faixas — uma passarela em estilo medieval fiorentino. Sim, uma imensa passarela decorada com afrescos de Giotto. Correram artistas de várias áreas: pintores, escultores, poetas, arquitetos a examiná-la com telescópios, todos se mostravam boquiabertos com seu primor estético, com sua aura hierática. Peritos internacionais cogitaram transportá-la em bloco a uma exposição que ocorreria na própria Padova. Eu não permiti que o fizessem.
Desencontramo-nos por completo, eu e ele. Seguimos vidas separadas, cada qual por seu labirinto de buscas, ilusões, amores, filhos, momentos e espaços…
